Concentrado no guardanapo que rabiscava feito louco, olhos expressivos, você me pareceu o tipo de pessoa que chora só de olhar uma pintura, o tipo de pessoa que entende. Aí eu puxei uma cadeira, sentei do teu lado, imitei o silêncio de alguma arte muda, querendo que você me entendesse. Você falou por uma hora inteira e perguntou se eu não ia falar nada, não respondi. Antes de ir embora, te entreguei uma reprodução minha em forma de arte muda pra você guardar e, quem sabe, chorar de vez em quando. Entre conversar comigo e com uma fotografia não há muita diferença, mas ninguém critica o silêncio da fotografia. No verso, escrevi aquela frase do Leminski “repare bem no que não digo”.
Queria que você me fizesse
audível, que criasse um portfólio combinando minhas expressões vazias com teus
poemas de guardanapo, que fossem poemas escritos apenas com aquelas palavras
cujo significado parece ser o oposto da sonoridade, porque é assim que eu
descobri que você é: feito as palavras que eu uso achando que significam uma
coisa e descubro que significam o contrário. Você deturpa minhas frases.
Quando fui ao teu apartamento,
minha foto estava emoldurada em um porta-retrato. Você me pediu desculpas por
ter cortado um pedaço pra foto caber naquela moldura de falsa felicidade. Eu
disse que tudo bem, já me cortaram pedaços antes, e te agradeci.
Você me entregou outra reprodução
minha em arte muda, um desenho da foto que eu te dei. Os traços do meu rosto
ilustrados por traços vindos dos teus dedos. Desenhou em mim um meio sorriso
que não existia na imagem real, e eu te agradeci por isso também. Teu apartamento
de solteiro parecia ter sido desenhado por você, cheio de meios sorrisos onde
eu sabia que não existiam. No chão frio, no cinzeiro, no violão largado na cama
vazia, nas poesias rabiscadas na parede. Pediu desculpas e disse que não
desenhava muito bem, eu disse que tudo bem, que de todos os contornos de meio
sorrisos que eu já fingi na vida, aquele foi o mais bem delineado. Você tirou a
foto do porta-retrato e me entregou mostrando a frase no verso, “repare bem no
que não digo”. Seguiu-se o diálogo:
- O silêncio do outro é sempre
língua estrangeira e ninguém ta a fim de fazer esforço pra traduzir ninguém. Se
você não fala nada, as pessoas vão embora. Acho bom você começar a falar porque
eu ando meio cansado ultimamente. Alguém já te disse que esse teu silêncio machuca?
- Meu silêncio não é maldade, é
covardia. As pessoas podem te acusar de todas as palavras que você já falou,
mas não podem me acusar do meu silêncio. Ou até podem, mas silêncio doe bem
menos que palavras quando jogam de volta na tua cara.
Você disse “eu te amo,
porra”. Eu respondi que nesse tempo que fiquei sem te ver, andei pesquisando e
descobri que o significado dessa frase é bem diferente da sonoridade, e que eu estava meio cansada ultimamente pra tentar traduzir o que queria dizer dessa vez, mas sabia
que era alguma coisa como “em algum momento um de nós irá fazer o outro de
otário”. Pedi desculpas e disse que tinha que ir embora, você disse que tudo
bem, que era viciado em melancolia e que só precisava de alguém que aparecesse
de vez em quando com a gentil crueldade de transformar aquela arte muda dentro
de você em algo sonoro, que ainda tinha muito espaço sobrando na parede pra
preencher com poesia, e me agradeceu.